segunda-feira, 5 de dezembro de 2005

História explicativa

Daniel Quinn

"Podes passar o resto do dia tentando descobrir qual a história que as pessoas da tua cultura têm vindo a encenar no mundo nos últimos dez mil anos. Lembras-te do que versa ela?"

"Do que versa a história?"

"Ela versa o sentido do mundo, as intenções divinas no mundo e o destino humano".

"Bem, posso contar-te histórias sobre essas coisas, mas não conheço uma história única".

"É a única história que todos na tua cultura conhecem e aceitam".

"Não creio que isso ajude muito".

"Talvez ajude se eu te disser que se trata de uma história explicativa, do gênero 'Como o elefante obteve a sua tromba' ou 'Como o leopardo obteve as suas manchas'".

"Está bem".

"E, imaginas tu, esta vossa história explica o quê?"

"Santo Deus, não faço a menor idéia".

"Isso já deveria ser claro a partir do que eu te disse. Ela explica como o mundo veio a ser o que é. Desde o início até hoje".

"Entendo," disse eu, e olhei pela janela durante alguns instantes. "O fato é que não tenho consciência de conhecer uma história que tal. Como eu disse, conheço histórias, mas nada que se pareça com uma história única".

Ismael refletiu um pouco. "Uma aluna minha, dentre os discípulos que mencionei ontem, sentiu-se na obrigação de me explicar o que procurava ela. Perguntou-me: 'Ninguém fica alarmado por quê? Ouço as pessoas falarem sobre o fim do mundo na lavanderia, e não parecem mais alarmadas do que se estivessem a comparar detergentes. Falam da destruição da camada de ozônio e da destruição total da vida. Falam da devastação das florestas tropicais, da poluição mortal que permanecerá conosco durante milhares e milhões de anos, da extinção diária de dezenas de espécies; do fim do próprio processo de desenvolvimento das espécies. E parecem de uma calma olímpica'.

"Eu disse-lhe: 'É isso então que desejas saber — por que razão as pessoas não ficam alarmadas com a destruição do mundo?' Ela pensou um pouco e respondeu: 'Não, eu sei por que razão não se alarmam elas. Não se alarmam por acreditarem no que lhes contaram'".

"Como assim?" perguntei.

"O que é que contaram às pessoas que as impede de se alarmarem, que as mantêm relativamente calmas enquanto assistem aos danos catastróficos que estão a infligir ao planeta?"

"Não sei".

"Contaram-lhes uma história explicativa. Deram-lhes uma explicação de como o mundo veio a ser o que é, e isto silencia o seu alarme. Esta explicação é totalmente abrangente, incluindo a deterioração da camada de ozônio, a poluição dos oceanos, a destruição das florestas tropicais e até a extinção humana — e isso as satisfaz. Ou talvez seja mais correto dizer que as pacifica. Participam da engrenagem durante o dia, narcotizam-se com drogas ou com televisão à noite e tentam não pensar muito seriamente sobre o mundo que estão a deixar para os seus filhos enfrentarem".

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Texto extraído do livro Ishmael, de Daniel Quinn.

Um comentário:

Anônimo disse...

Olá, se interessa por assuntos relacionados a critica da civilização? Participe do nosso grupo de discussão sobre essas idéias, inspirado em Daniel Quinn.

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