sábado, 31 de dezembro de 2005

A vocação para escritor

Jean-Paul Sartre

O Espírito Santo me contemplava. Acabara justamente de adotar a decisão de remontar ao Céu e abandonar os homens; eu dispunha apenas do tempo necessário para me oferecer; mostrava-lhes as chagas de minha alma, as lágrimas que embebiam meu papel, ele lia por cima de meu ombro, e sua cólera passava. Fora aplacado pela profundidade dos sofrimentos ou pela magnificência da obra? Eu me dizia: pela obra; às escondidas, pensava: pelos sofrimentos. É claro que o Espírito Santo só apreciava os escritos verdadeiramente artísticos, mas eu lera Musset, sabia que “os cânticos mais desesperados são os mais belos” e resolvera captar a Beleza com um desespero ardiloso. A palavra gênio sempre se me afigurava suspeita: estive a ponto de sentir por ela total aversão. Onde estaria a angústia, onde a provação, onde a tentação abortada, onde o mérito, enfim, se eu possuía o dom? Eu mal suportava o fato de ter um corpo e todos os dias a mesma cabeça, não ia deixar que me encerrassem num equipamento. Eu aceitava minha designação, desde que ela não se apoiasse me nada, que brilhasse, gratuita no vazio absoluto. Eu mantinha cociliábulos com o Espírito Santo: “Hás de escrever”, dizia-me. Eu torcia as mãos: “Que tenho eu, Senhor, para que me escolhêsseis?” “Nada de particular.” “Então, porque eu?” “Não há razão.” “Tenho pelo menos algumas facilidades de pena?” “Nenhuma. Crês que as grandes obras nascem das penas fáceis?” “Senhor, uma vez que sou tão nulo, como poderia produzir um livro” “Aplicando-te.” “Então, todo mundo pode escrever?” “Todo mundo pode, mas foi a ti que escolhi.” Esse truque era bastante cômodo: permitia-me proclamar minha insignificância e simultaneamente venerar em mim o autor de futuras obras primas. Eu era eleito, marcado, mas sem talento: tudo viria da minha longa paciência e de minhas desventuras; eu me negava a toda e qualquer singularidade: os traços de caráter afogam: eu não era fiel a nada, exceto ao compromisso real que me conduzia à glória por meio dos suplícios.

Trecho extraído de: SARTRE, Jean-Paul. As palavras, pp. 124-125, Rio de Janeiro, Nova fronteira, 2005.

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