sexta-feira, 26 de setembro de 2014

Insônia

MLO*
“O que vejo, o que sou e suponho será apenas um sonho num sonho?”
--- Edgar Allan Poe

Quando se sofre de insônia, uma das melhores coisas para se fazer de madrugada é escrever. Ficar plugado no computador, por horas, digitando idéias até que o sono finalmente chegue. Isso geralmente é um problema, mas às vezes até que vem a calhar. É o final do semestre, e eu aproveito a vigília para terminar o último trabalho de literatura. A luz branda do monitor mal ilumina o ambiente e o silêncio só é quebrado pelo telequeteque do teclado. O frio cortante é amenizado pelo chá quente. Estranhamente, a inspiração está fluindo. Minhas considerações finais são armazenadas no documento – estou prestes a concluir meu texto. O frio aumenta. O chá acaba. O corpo cansado pede socorro para o sono. A mente, pouco ágil, precisa de algo que ajude manter a concentração.
Vou até a cozinha, preparo um café forte e volto para o quarto. A xícara fumegante transborda no pires. Sento-me. Para minha surpresa, na telinha, no lugar de meu texto, amontoam-se palavras incoerentes. Meu coração acelera. Putz! Perdi todo o meu trabalho... Serei obrigado a refazê-lo totalmente... Mas como, se não escrevi nenhum rascunho e fui digitando a medida em que as idéias me vinham à cabeça? Tento mudar a página. Subo a barra, desço a barra. O Word fica na mesma. Noto que as palavras estão organizadas duas a duas e sempre obedecendo ao mesmo padrão: “nunca mais”. Imediatamente passo o antivírus e verifico o firewall. Nada é constatado. Desligo o computador. Será que a condição de insone está me pregando uma peça? Estarei pagando o preço por abusar dos limites do corpo? Afinal, já faz três dias que não durmo direito... Sim, deve ser isso... Quando se tem insônia, nada parece ser real. Você nunca está realmente acordado, mas também nunca está realmente dormindo... Sua mente não consegue focalizar um pensamento, pois sempre há vários – tudo se torna disperso. Além disso, o céu e azul a água é molhada e os computadores travam... Novos vírus surgem todos os dias... Talvez, mais tarde, quando estiver devidamente descansado, eu consiga compreender o que aconteceu e seja capaz de perceber que tudo não passa de uma sucessão comum de causas e efeitos muito naturais. Sim, deve ser isso... Que seja, então... Não posso perder tempo. Tenho que recomeçar... Reinício o computador. Concentro meu pensamento. Com muita dificuldade, consigo refazer os tópicos principais. Os olhos ardem. O corpo dói. O sono finalmente chega. Preciso de mais café... 

Esquento a água.
Coloco o pó.
Adoço.
Bebo.
Pronto: adeus sono!
De volta, olho para o monitor – a tela está repleta de “nunca mais”. Minhas mãos tremem. O café amarga na boca. Engulo em seco. Desesperado, tento aplicar um "Ctrl + Alt + Del" no computador. É inútil, uma mancha preta aparece na tela. As palavras “nunca mais” – agora enormes – dissolvem-se como que se fundindo. A impressora começa a vomitar folhas com manchas pretas. A imagem é tal qual o vulto de um pássaro... De súbito, as caixas acústicas emitem um som horrendo – algo como o piar agudo de um pássaro. Tento desconectar o computador da tomada: está grudada. Corro até o telefone: está mudo. Busco a porta da rua: está trancada. Desespero. Penso em gritar: minha voz não sai. Isso está realmente acontecendo? Estou acordado ou sonhando? O som do vento batendo na janela me tira do torpor. Vou até lá. Puxo a cortina. Não consigo avistar nada lá fora, só a escuridão e nada mais... Um relâmpago corta o céu. O raio clareia a visão. Junto à janela um pássaro negro me espreita. Entro em pânico. Fecho a cortina. Volto-me para o quarto em silêncio. Avanço alguns passos e escuto o ruído compassado de uma respiração. Nesse momento, raios brilhantes de luz caem vividamente sobre um vulto. No mesmo momento, vejo seus olhos amarelos. No instante em que olho, uma espécie de dormência, uma sensação gelada instantaneamente percorre meu corpo. Meu peito ofega, meus joelhos batem, meu organismo inteiro torna-se presa de um horror tão sem motivo quanto irracional. Lutando para respirar, sento-me diante do computador. Terei enlouquecido? Eu enxergara, eu havia visto, sem a menor dúvida que o vulto tinha as feições de alguém conhecido, mas, eu tremia, como se estivesse sofrendo um ataque de malária, tomado pela noção de que não eram. Seria possível que aquilo que eu avistara agora fosse apenas uma alucinação, ou o mero resultado de ter praticado de forma tão habitual e constante a abstinência do sono? O que havia naqueles olhos que me confundia tanto assim? Olhei novamente para ter certeza de que estava acordado. Eu contemplava com os olhos arregalados, enquanto meu cérebro rodava, impulsionado por uma multidão de pensamentos incoerentes. Mas, o vulto não estava mais lá... O silêncio é quebrado por uma voz melancólica que pronuncia as seguintes palavras:
Oh! Que minha juventude foi um permanente devaneio!
Meu espírito não despertou, até que veio
o raio de uma Eternidade que trouxesse a aurora.
Sim! Embora fosse esse longo sonho de aflição perdida,
Era melhor que a realidade gélida
da vida desperta, dos que de coração devem ser,
e ainda têm sido, sobre a amável Terra
um caos de profunda paixão, desde o início da vida. 1 

Abaixo a cabeça e fecho os olhos. Preciso me concentrar e encontrar uma explicação lógica para o que está acontecendo – tenho que descobrir motivos para duvidar da evidência de meus sentidos. Lanço-me imediatamente num vórtice de loucura descuidada e insensata que varre tudo de minha memória, exceto as mais tenras recordações. Como se não bastasse ver vultos, agora escuto vozes... Mais uma vez fecho os olhos e tento me concentrar. O pássaro e o vulto, com seus olhos amarelos, não saem de meu pensamento. Assim como o poema sobre a juventude desperdiçada, e as palavras “nunca mais”...O que isso quer dizer? Tenho que limpar minha mente. Sem motivo aparente, apego-me a recordações de minha infância. Quando criança, eu não fui como os outros, e nunca vi como os outros viam... Eu não podia tirar minhas paixões da mesma fonte que eles... O que despertava meu coração para a alegria tinha outra origem... Assim como era outra a razão de minha tristeza... Tudo o que amei, amei sozinho. E da minha infância, da aurora do discernimento entre bondade e maldade, permanece um mistério: Do riacho ou da fonte; do penhasco vermelho da montanha; do sol que girava ao meu redor em seu tom dourado de outono; Do raio do céu ao passar voando por mim; Do trovão e da tempestade, e da nuvem que tomava a forma (quando o céu calmo era azul) de um demônio ante meus olhos.2

Quando finalmente consigo focalizar minha mente, meu corpo é tomado por uma sensação estranha. Sinto-me leve, como se estivesse flutuando, possuído por uma liberdade até então desconhecida, como se de repente não sentisse mais preocupações... Abro meus olhos e, para minha surpresa, já é dia. Terei imaginado tudo isso? Tudo não passou de um pesadelo? Olho para o monitor, meu trabalho está no ponto em que deixei antes de ir preparar o café pela primeira vez. Respiro aliviado e penso comigo mesmo: “foi um sonho e nada mais...”. Vou ao banheiro, tomo um a demorada ducha fria para ter certeza de que estou realmente acordado. Volto para o quarto. Avisto o monitor: pousado sobre ele está um enorme pássaro preto com brilhantes olhos amarelos e, logo abaixo, as palavras “nunca mais” se acumulam na tela...

1. DREAMS, 
Edgar Allan Poe (A tradução apresentada no conto é livre e bem picareta...) 

Oh! that my young life were a lasting dream!
My spirit not awakening, till the beam
Of an Eternity should bring the morrow.
Yes! tho' that long dream were of hopeless sorrow,
'Twere better than the cold reality
Of waking life, to him whose heart must be,
And hath been still, upon the lovely earth,
A chaos of deep passion, from his birth. 
But should it be- that dream eternally
Continuing- as dreams have been to me
In my young boyhood- should it thus be given,
'Twere folly still to hope for higher Heaven. 
 For I have revell'd, when the sun was bright
I' the summer sky, in dreams of living light
And loveliness,- have left my very heart
In climes of my imagining, apart
From mine own home, with beings that have been
Of mine own thought- what more could I have seen? 
 'Twas once- and only once- and the wild hour
From my remembrance shall not pass- some power
Or spell had bound me- 'twas the chilly wind
Came o'er me in the night, and left behind
Its image on my spirit- or the moon
Shone on my slumbers in her lofty noon
Too coldly- or the stars- howe'er it was
That dream was as that night-wind- let it pass. 
I have been happy, tho' in a dream. 
I have been happy- and I love the theme:
Dreams! in their vivid coloring of life,
As in that fleeting, shadowy, misty strife
Of semblance with reality, which brings
To the delirious eye, more lovely things
Of Paradise and Love- and all our own! 
Than young Hope in his sunniest hour hath known. 

2. ALONE, 
Edgar Allan Poe (A tradução apresentada no conto é livre e bem cara-de-pau...)
From childhood's hour I have not been
As others were--I have not seen
As others saw--I could not bring
My passions from a common spring. From the same source I have not taken
My sorrow; I could not awaken
My heart to joy at the same tone;
And all I lov'd, I lov'd alone. Then--in my childhood--in the dawn
From ev'ry depth of good and ill
The mystery which binds me still:
From the torrent, or the fountain,
From the red cliff of the mountain,
From the sun that 'round me roll'd In its autumn tint of gold--
From the lightning in the sky
As it passed me flying by--
From the thunder and the storm,
And the cloud that took the form
(When the rest Heaven was blue)
Of a demon in my view.

*Texto escrito no já longínquo ano de 2007 e que por qualquer motivo estava nos meus rascunhos esperando ser publicado.

Campo, chinês e sono

Carlos Drummond de Andrade

A João Cabral de Melo Neto

O chinês deitado
no campo. O campo é azul,
roxo também. O campo,
o mundo e todas as coisas
têm ar de um chinês
deitado e que dorme.
Como saber se está sonhando?
O sono é perfeito. Formigas
crescem, estrelas latejam,
peixes são fluidos.
E árvores dizem qualquer coisa
que não entendes. Há um chinês
dormindo no campo. Há um campo
cheio de sono e antigas confidências.
Debruça-te no ouvido, ouve o murmúrio
do sono em marcha. Ouve a terra, as nuvens.
O campo está dormindo e forma um chinês
de suave rosto inclinado
no vão do tempo.

À espera dos bárbaros

Constantino Kaváfis (1863-1933)  O que esperamos na ágora reunidos?  É que os bárbaros chegam hoje.  Por que tanta apatia no senado?  Os s...